O ano era 1964 - do lado da igreja da Consolação em São Paulo, numa boate chamada Star Dust, uma banda ensaiava o repertório, como de hábito. O crooner, Jair Rodrigues. O maestro, Hermeto Pascoal. E estavam os caras do Zimbo Trio. Jair chegou na boate como sempre mas mostrou um samba novo, dum compositor chamado Edson Menezes:
- Gente, tem uma música aqui pra gente ensaiar. E entoou o verso falado: “Deixa que digam, Que pensem, que falem, Deixa isso prá lá, Vem prá cá, O que é que tem? E eu não tô fazendo nada, Nem você também, Faz mal bater um papo, Assim gostoso, com alguém?”
Um Hermeto meio atônito, ponderou: - Ô “Furico” (alí, todo mundo na banda se chamava uns aos outros de Furico), eu não sei acompanhar conversa não, só música!
- Mas tem a segunda parte, ó: Vai vai por mim, balanço de amor é assim... E dessa forma, acertaram o tom do novo samba. Rolou a noite e, por volta das três da manha, um casal que tava na casa desde o ensaio, pediu: - Jair, toca aquela que vocês tavam ensaiando hoje cedo? “Tequetê-Tucutú, Patatí-Patatá...”. Pra atender ao pedido, Jair virou pra Hermeto Paschoal:
- Olha, o pessoal ta pedindo aquela que a gente ensaiou hoje cedo.
Mas Hermeto não lembrava. Jair então, por instinto, impôs as duas mãos com as palmas viradas pra cima e começou a alternar e sacudir freneticamente aquelas mãos enormes na cadencia do samba falado, palma pra cima, palma pra baixo... “Deixa que digam, Que pensem, que falem, Deixa isso prá lá, Vem prá cá, O que é que tem? E eu não tô fazendo nada, Nem você também, Faz mal bater um papo, Assim gostoso, com alguém?” Quando a banda se deu conta, casais se descolavam na dança pra imitar o gesto daquele refrão diferente, ritmado e falado. Nascia ali o primeiro RAP do Brasil. Depois daquele dia, ninguém mais esqueceu Jair Rodrigues.
Outubro, 2004. Eu, metido num mar de ansiedade e essa ansiedade tinha um nome: Jair Rodrigues. Em duas horas, começaria um show para cerca de mil pessoas em comemoração ao Dia do Médico no Minas Centro, Belo Horizonte. O que me deu na cabeça de contratar aquele “Rei Negro” da MPB pra fazer um show? Quem eu penso que sou, afinal de contas? Pensava nisso fazendo a barba, quando me liga o meu amigo Saldanha:
- O Jair já chegou no hotel, mas a notícia não é boa. Ele chegou de van, de outro show em Uberlândia - tá sem voz, tô levando ele no Dr. Alexandre Rattes pra ver o que dá pra fazer. Te dou notícias.
Não sabia se ria, se chorava. Era laringite, pelos muitos shows. O Jair garantiu que cantava, Dr. Rattes receitou algo e na hora do show, suspense. Entra o Jair, ovacionado por mais de mil pessoas. Dava pra ver que o som da banda cobria a voz do mito, afônico. Minhas mãos estavam frias, mas era Jair Rodrigues. Começou a entoar “Tristeza”, terceira música do set list já com voz de quem disse a que veio. Agradeceu do palco, o Dr. Alexandre pela força, eu também agradecia. Voz aquecida, o anfiteatro veio abaixo em uma hora e meia de espetáculo, encerrado com “Majestade o Sabiá” e “Deixa isso pra lá”. Eram centenas de mãos sacudindo e Seu Jair regendo todo mundo, em pé numa das poltronas, no meio do público.
Depois do show, fomos comer galinha ao molho pardo no Maria das Tranças, com a banda e frente a frente com o Jair. Perguntei: “- e a garganta, Jair?” Antes de colocar um naco de galinha na boca, sorriu largo: “- Laringite? Com sessenta e cinco anos, cinqüenta de estrada, laringite se cura com mais música”. Não sobrou muito a dizer, só aprendizado.
Jair Rodrigues de Oliveira nasceu no dia 06 de fevereiro de 1939, em Igarapava, São Paulo. Dia desses descobri que aniversariávamos em dias próximos (nasci em 05 de fevereiro). Pena não poder ter dito isso a ele naquele jantar inesquecível – por isso resolvi contar essa história. Com a energia desse Rei Negro, não duvido que ainda possa ter a chance de outro encontro, quem sabe? Vida longa a você, Jair Rodrigues.
fonte: jair rodrigues website, youtube e Record Cultura (jornalista Arnaldo Duran)